miércoles, 15 de diciembre de 2010

Patrimônio cultural como raiz do futuro



Madre de las piedras
oscuras que teñirían
de sangre tus pestañas!

Pablo Neruda
Canto General


por Ângelo Oswaldo de Araújo Santos



Em fevereiro de 1922, a Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, edifício inspirado na extravagância do Palais Garnier de Paris, marcava a eclosão de um grande movimento de renovação da poesia, da literatura, das artes visuais, do teatro e da música no Brasil. Alcançando, em primeiro lugar, o próprio olhar brasileiro sobre a arte e a cultura, o modernismo articulou-se e irrompeu no ano do centenário da independência do país, ocorrida em 7 de setembro de 1822, com a proclamação feita pelo príncipe regente Dom Pedro (1798-1834), tornado imperador Pedro I.


A queda da monarquia e o advento da república, em 15 de novembro de 1889, pretenderam haver atualizado o Brasil, preparando-o para o século XX, em sintonia com as demais nações americanas. Mas a forte influência européia, exercida sob os padrões neoclássicos do ecletismo, enquadrou a cultura brasileira e condicionou seu olhar nos limites estreitos e asfixiantes de um campo do qual a própria Europa se retirava, sempre mais, desde os impressionistas até as estonteantes rupturas dos primeiros anos do novo século, de Paris a Moscou, de Milão a Berlim.
Os modernistas brasileiros, diferentes daqueles assim denominados em outros países da América Latina — pelo que se chama de modernista o poeta Ruben Dário, no Brasil qualificado como parnasiano —, praticavam o espírito de vanguarda que tinha contaminado os polos culturais europeus. Visavam, porém, uma nova estética, “na afirmação desse nacionalismo que deve romper os laços que nos amarram desde o nascimento à velha Europa, decadente e esgotada”, conforme escreveu Paulo Prado. Almejavam a libertação do verso brasileiro, a independência da arte e do artista reencontrados com o chão natural.


Os poetas Manuel Bandeira e Mário de Andrade, em princípio influenciados pelo simbolismo de Verlaine e Mallarmé, a pintora Anita Malfatti, tocada pelo expressionismo alemão, o pintor Di Cavalcanti, autor da marca do programa da famosa Semana, e o extraordinário músico Heitor Villa-Lobos encontravam-se entre os principais protagonistas da revolução que explodiu na Semana de 1922 e atingiu diversos pontos do país.


Em 1924, o principal grupo de modernistas de São Paulo convidou o poeta suíço-francês Blaise Cendrars para uma temporada no Brasil. Um incidente assinalou o desembarque de Cendrars, no porto de Santos. Quiseram impedir a sua entrada no país, por ser mutilado — o Blaise “sans bras”, que perdera um braço, em batalha da Grande Guerra, funcionários alfandegários julgaram tratar-se de um imigrante.


Mário de Andrade escreveu, em artigo inflamado, que aquele era o exatamente o braço de que o Brasil necessitava para acionar a manopla do tempo e inaugurar o futuro. O poeta europeu de fato veio impulsionar intensamente a renovação que efervescia no espírito das gerações do começo do século. Era fevereiro e, juntos, eles seguiram para o Rio de Janeiro, em pleno Carnaval, aturdidos pela brasilidade da festa, o que fez com que se organizassem para uma viagem às antigas cidades coloniais do estado de Minas Gerais, em abril, por ocasião da Semana Santa. “Não mais os navios para o Havre, mas os trens para Minas”, recomendou-lhes Cendrars, diante do encantamento em que se enredaram nas cidades históricas.

Experimentaram ali a mesma sensação que, em 1908, havia perturbado o jornalista, escritor e diplomata uruguaio Manuel Bernárdez. Nascido na Espanha e radicado em Montevidéu, tendo sido, na década de 1920, embaixador do Uruguai no Rio de Janeiro, Bernárdez fora enviado ao Brasil para realizar uma série de reportagens sobre o progresso da jovem república para “El Diário”, de Buenos Aires, logo reunidas em livro que obteve largo sucesso, em razão dos elogios às transformações positivas do país.


Na cidade de Ouro Preto, assombrado pelo espetáculo visual que prontamente o fascinou, Manuel Bernárdez questionou o Brasil diante da decadência ruinosa da velha metrópole do ouro colonial:

– Como seria grato e bom acudir a Ouro Preto! Não será possível deixares expirar assim uma cidade que é carne de tua carne, força de tua força e glória de tua glória! Por que não fazeres dela teu ateliê, tua usina cerebral, tua Coimbra, tua cidade do ideal, teu horto do futuro! Onde floresceu tua velha opulência, por que não semeares a flor preciosa de tua nova cultura! Por que não encheres esse álveo onde passaram rios de ouro com caudais inesgotáveis de pensamento, ensino, civismo, ciência, moral e progresso? Entre as tumbas gloriosas e os berços livres há uma indestrutível correlação! Ouro Preto, eu o vejo, eu que sou um transeunte, vejo que enterra suas raízes em pleno coração do passado brasileiro, e essas raízes não se podem mirrar sem que sofra uma perda de seiva o coração onde profundaram. A tradição é uma amorosa nutriz que alimenta a alma com energias inesgotáveis. Ditosos os povos que lhe podem beber nos seios maternais exemplos de abnegação, arrojos, poesia, legendas de heroísmo, lições de fé! Ouro Preto, que provou a grandeza e o infortúnio, que subiu e desceu todas as duras curvas da sorte, como se sua orografia bela e atormentada fosse o diagrama de seu destino, pode ser o magnífico cenário de um grande florescimento acadêmico, artístico, científico – pode ser um ponto de concentração de culturas e de irradiação de aptidões técnicas e de forças morais, armadas para todas as nobres conquistas!


Belo Horizonte e Ouro Preto não se excluem – completam-se, formando a cadeia ideal de união do que foi com o que está sendo e com o que há de ser. Minas não poderá, sem dúvida, dar vida e desenvolvimento a duas metrópoles – porém a União tem aí um dever e uma honra, que assumir e fazer seus – porque se Ouro Preto acabasse essa vida que hoje se vai extinguindo entre cinzas de lenda, não ia ser só de Minas o luto – o Brasil inteiro havia de passar pelas ânsias de uma dor e amargar a brusca evidência de uma perda!

Impactados de igual modo, os modernistas foram muito além e chegaram ao núcleo essencial do desafio em que se debatiam. De imediato, identificaram as raízes mais profundas da cultura do Brasil. Viram na arte de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), a primeira manifestação genuinamente brasileira, uma criação que fundira as diversas contribuições e resultara num gesto novo, autônomo e original. Aleijadinho nasceu e morreu em Ouro Preto, tendo recebido essa alcunha em razão de deformidades impostas, no final de sua vida, por uma grave doença. Foi arquiteto, escultor e entalhador, nas principais cidades de Minas Gerais, sendo considerado por especialistas tais quais o historiador francês Germain Bazin, o inglês John Bury e o norte-americano Robert Chester Smith como o primeiro artista brasileiro, ou seja, o primeiro a exprimir um estilo próprio, não mais importado mas resultante da soma genial de variados contributos que a maleabilidade do barroco atraía e o talento do mestre amalgamava. Sua lição, para os modernistas, foi re-significadora. Globalizado pelas conquistas ibéricas, o barroco permitiu que aflorassem, em diferentes partes do mundo, interpretações e leituras originais de seus paradigmas e estilemas. Sendo a arte da dominação, inspirou a liberdade; instrumento da opressão absolutista, operou a libertação criadora; dogma da contra-reforma, provocou a sensualidade do trópico.


O chamado barroco mineiro, que plasmou a produção artística e a vida cultural e social da região de Minas Gerais, no século XVIII, engendrou as primeiras manifestações tipicamente brasileiras de artes visuais, música e literatura, sendo o Aleijadinho um verdadeiro fenômeno de criatividade. Ao mesmo tempo, e em virtude desse ambiente, a conjuração de 1789, conhecida como a Inconfidência Mineira, foi o primeiro grande passo no sentido da independência do Brasil.
O arquiteto e professor chileno Manuel Casanueva, estudioso das igrejas de Ouro Preto, afirmou que “estos edificios (...) en Brasil constituyen un estilo arquitectónico propio y original de América, lo que puede presentarse como un signo de carácter que adquiere la arquitectura americana en su época de fundación, situación que puede ubicarnos frente a una tipología de la arquitectura luso-americana possible de trascender al resto de Iberoamérica”.


Embora nosso diálogo não seja intenso, há crescente interesse pelo patrimônio cultural mineiro nos países latino-americanos. É importante lembrar que, nos anos de 1940, o fotógrafo argentino Horácio Coppola foi a Minas Gerais fotografar a obra do Aleijadinho, num registro sensível e impactante. O escritor Abelardo Arias, na década de 70, publicou em Buenos Aires um romance no qual resgata a vida do Aleijadinho no ambiente da Inconfidência Mineira. Em 1973, Júlio Cortázar visitou Ouro Preto e Congonhas, a fim de conhecer o legado do artista. Octavio Paz esteve nas duas cidades, em 1985, com o mesmo objetivo.


A viagem de 1924 ao barroco de Minas alterou os rumos do modernismo. Tarsila Amaral, importante pintora de São Paulo, que havia estudado em Paris com Gleizes, Lothe e Fernand Léger, não seria mais a aluna aplicada de referências francesas, porém a inventiva e inquietante criadora do “Abapuru”, óleo sobre tela que hoje se acha no MALBA, Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires. Ela passou a pintar as cenas que, como num filme, vira desfilar pelas janelas do trem, as paisagens do interior e as cores provincianas até então menosprezadas, e figuras míticas que emergiram uma nova mirada sobre as coisas brasileiras.


Os modernistas proclamaram a “redescoberta do Brasil”. Queriam redescobrir a realidade brasileira de uma perspectiva original, e situando-se nela, o poeta Oswald de Andrade lançou o Manifesto Antropofágico, em 1928, evocando o fato de que os índios tupinambás haviam comido o primeiro bispo do Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha, tão logo chegara ao litoral, salvo de naufrágio, no século XVI. Para o poeta, era preciso deglutir toda contribuição estrangeira, digerir a arte européia e refazê-la como o Aleijadinho no século XVIII. “Poesia pau-brasil”, assim Oswald intitulou o seu livro de 1924, na busca da origem e da originalidade. De uma poesia de exportação, tal como a madeira vermelha fora o primeiro produto brasileiro levado à Europa. Mário de Andrade publicou “Macunaíma” (1928), uma rapsódia com que revolucionou a literatura e a visão do país.


Os modernistas despertaram a atenção geral para as cidades históricas e o patrimônio artístico. O passado não é o que passou, mas o que fica daquilo que passou, ensinou Alceu Amoroso Lima. A viagem de 1924 foi urna referência extraordinária. Quase todos os poetas modernistas, nesse momento, compuseram obras sobre temas do patrimônio e lutaram por sua preservação.


Em 1935, o então ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, que havia participado do movimento modernista na década anterior e tinha como chefe de gabinete o poeta Carlos Drummond de Andrade, acolheu o clamor dos modernistas. Convidou, inicialmente, o poeta Mário de Andrade para elaborar uma grande enciclopédia do patrimônio cultural do país, mas a completa falta de levantamentos e inventários levou Mário a dizer-lhe que o caminho seria outro. Assim, a partir de 1936, começou a ser instalado o Serviço (hoje Instituto, IPHAN) do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tendo à frente o escritor modernista Rodrigo Meio Franco de Andrade.


Os poetas Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade e os arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer achavam-se entre os primeiros colaboradores do IPHAN. Essa verdadeira campanha de resgate da história e da memória do Brasil, dos testemunhos materiais móveis, das edificações e centros urbanos que então definhavam, do universo visual da tradição vernacular e da arte da mão do povo, do som da terra e de uma sensibilidade primitiva, que era também a dos cubistas, superando o paradigma europeu — foi todo esse movimento que conduziu as vanguardas a novos enunciados estéticos, num patamar até ali apenas sonhado por alguns poucos.

Dessa forma, pode-se dizer que o processo de renovação artística e cultural do Brasil no século XX foi balizado pelas referências advindas do patrimônio cultural, como fonte permanente do novo. O gesto inédito da criação, a ruptura, a invenção do design, as vanguardas, a reinterpretação das tendências internacionais, a construção da modernidade brasileira, tudo isso evoluiu a partir da mirada modernista sobre o patrimônio que o Brasil acumulara ao longo da história colonial, a herança pré-cabralina, a contribuição africana, o primado europeu, o pacto antropofágico de Oswald de Andrade. A procura tinha por meta uma língua e uma linguagem brasileiras.


É significativo enfatizar que, no Brasil, patrimônio e vanguarda, tradição e ruptura, estabeleceram um diálogo rico de conseqüências no plano da criação artística. Os conceitos de proteção, salvaguarda e conservação de bens culturais materiais e imateriais são abastecidos pelo desejo de evolução com base no fluxo histórico que vem do passado rumo ao futuro, em comunicação dinâmica e transformadora.


Um século depois da independência, o Brasil quis ser independente no território da cultura e proclamou a liberdade de criar sem a regência estética da velha metrópole européia. Mais um século é vencido e, na mirada do bicentenário, posto em que se colocam como observadores quase todos os Estados ibero-americanos, a questão se dirige ao modo pelo qual os nossos países se inserem no mundo globalizado.


É ainda o patrimônio cultural que pode responder e equacionar o desafio. Documento de identidade de um país, raiz, referência, baliza, fonte de inspiração e ânimo, os acervos e as linguagens culturais constituem o melhor detector de vírus que possam contaminar a soma das contribuições e o diálogo enriquecedor de que falavam os modernistas de cem anos atrás. Quem conhece Ouro Preto, disse o ensaísta Afonso Arinos de Melo Franco, não pode duvidar do futuro do Brasil. Quem conhece o patrimônio dos países aqui reunidos, mais ainda confia no amanhã da América Latina.


Há cerca de 20 anos, o pensador Emanuel Dimas de Melo Pimenta, em conversa com um diplomata brasileiro em Lisboa, ouvia dele a profunda impressão sentida diante de um planeta aparentemente sem ação, “imobilizado” face a tudo o que acontecia. “As pessoas parecem estar paralisadas, como se estivessem petrificadas por uma overdose informacional”. Algum tempo antes, frisou Melo Pimenta, McLuhan havia afirmado que “todos os media são clichês ambientais. O efeito de tais ambientes é a narcose ou entorpecimento. Este é o tipo de prisão que, misteriosamente, resulta em metamorfose”.


As tecnologias modernas, fatores exógenos, favorecem a diluição das características e peculiaridades culturais de um país, no processo dessa nova dependência, que é tecnológica e é cultural. O espaço da cultura se demarca pela ação criadora do homem, a qual expressa a sua liberdade, e os referenciais acumulados nesse contexto são instrumentos para a construção dialética do presente e do futuro, porque ainda existe, como escreveu o pensador e economista Celso Furtado, uma resistente capacidade de reação, fundada na crença de que a história do homem está longe de ter sido cabalmente contada.


Aonde o levará a civilização que o transforma em robô? — indaga Furtado, ao contemplar o horizonte de perplexidades do terceiro fim de século vivido pela civilização industrial. Que formas assumirá a sua última resistência? Haverá uma nova civilização ou apenas a prolongação da atual sob formas degradadas?


O ponto crucial da cultura na era da globalização reside no fato de que as atividades culturais e a ação criadora do homem se operam em espaços nacionais, entre a regra e a exceção, mas dependentes de impulsos gerados no plano transnacional, condicionantes de idéias e sentimentos mundializados. Tudo é teleguiado pelas mesmas matrizes globais. Novas atividades religiosas e para-religiosas, de um lado, e o caráter instrumental da ciência na transformação do mundo, de outra parte, são oferecidos como caminhos antagônicos, embora permitindo eventuais satisfações.


Estão em causa a alimentação da criatividade em sua área mais nobre, que é a da atividade artística, as relações do homem com a natureza e o suporte social da reprodução da espécie. Nos três casos, prossegue o intelectual brasileiro, os conflitos emergentes assumem a forma de rejeição das estruturas de enquadramento social, de afirmação da criatura humana, de reivindicação da liberdade,
— Tudo se passa como se o homem houvesse desesperado de “aperfeiçoar” as engrenagens que criou, de criticar a razão a partir da própria razão, de defender-se da técnica com mais técnica. E para mudar de rumo, volta às próprias origens, retoma contato com suas dimensões secretas, assume a plena lucidez. E toma pé no fundamental, na essência do humano, que é a ânsia de ser livre — conclui Celso Furtado.


O Chile celebra o bicentenário de sua independência, congregando os municípios à volta do desafio da conservação do patrimônio e da conquista do futuro. Na mirada dos dois séculos de construção nacional dos países ibero-americanos, a linha evolutiva que advém dos primórdios milenares ilumina tanto a origem quanto o destino de nossas culturas, indicando a liberdade, a justiça e a paz como metas de que jamais nos afastaremos.

Ângelo Oswaldo de Araújo Santos é jornalista, escritor e advogado. Prefeito municipal de Ouro Preto (1993-96, 2005-08, 2009-12), exerceu os cargos de secretário de Estado da Cultura de Minas Gerais, presidente e conselheiro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, chefe de gabinete do Ministério da Cultura e ministro interino da Cultura do Brasil, na gestão do ministro Celso Furtado. Foi condecorado pelos governos de Portugal, Espanha e França.









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